especial para O GLOBO - 13.10.2010
Entrevista com o Nobel Vargas Llosa
O peruano Mario Vargas Llosa, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, é um dos mais importantes escritores latino-americanos. Llosa, que está no Brasil para participar nesta quinta-feira, em Porto Alegre, do projeto Fronteiras do Pensamento, é autor, entre outros, de “Tia Júlia e o escrevinhador”, “Pantaleão e as visitadoras” e “A guerra do fim do mundo”, narrativa que aborda a vida do beato Antônio Conselheiro, líder dos jagunços e beatas exterminados na Guerra de Canudos. Nesta entrevista ainda inédita, concedida ao escritor Pedro Maciel durante a passagem anterior de Llosa pelo Brasil, em 2007, ele fala sobre a sua desilusão política e declara que opina como um escritor e como um intelectual, “não como um político, o que não sou nem voltarei a ser”. Vargas Llosa reafirma sua crença no liberalismo político ao analisar os rumos da economia mundial. Fala também sobre os autores que o influenciaram, como Flaubert, Tolstói e Dostoiévski, e destaca Jorge Luis Borges e Guimarães Rosa como grandes autores do nosso tempo.
O livro “Peixe na água” é uma narrativa que aborda a sua aventura política. É também a história de que como o senhor se tornou um escritor?
No início minha ideia era escrever exclusivamente sobre minha aventura política, mas depois pensei que isto daria uma versão muito inexata do que sou, porque apareceria só como político — algo que na realidade não sou e sequer me senti como tal nos anos em que estive envolvido na política. Fiz política, certamente, mas sempre me senti um escritor, um intelectual, que temporariamente fazia política, mas que iria retornar ao seu trabalho intelectual. E por isso, no livro, finalmente decidi incluir de maneira alternada os capítulos pessoais sobre minha infância, minha adolescência; que foram esses anos nos quais descobri minha vocação literária, nos quais assumi na prática essa vocação e comecei a ser um escritor. Achei que alternando estas duas experiências, o livro daria, então, uma versão mais exata do que sou.
O escritor, o artista não precisa necessariamente entrar para a política para agir politicamente em prol da sociedade.
É claro que não. Há muitos escritores que nunca participaram da política ativa, mas tiveram uma influência importante na vida política pelas suas ideias, pelas tomadas de posição, por seus escritos. Eu não acho que o escritor deva necessariamente dar esse salto para a política ativa, profissional. Acredito que o máximo que se pode pedir ao escritor é que participe no debate público, sobretudo em países como os nossos, onde há ainda problemas tão graves, tão urgentes para resolver; onde estamos ainda discutindo o modelo de sociedade que iremos ter. O escritor é um privilegiado em nossos países. É um homem que sabe ler, sabe escrever, tem plateia, pode chegar até um público. Bem, isto significa um certo poder e acho que o escritor deveria empregá-lo pelo menos no debate, na discussão dos problemas, das possíveis soluções. Mas acho que a participação ou a não participação é algo que tem a ver com cada indivíduo em particular, que não se pode estabelecer uma norma geral.
Hoje os tempos são libertários e não mais revolucionários. Curiosamente a ideologia passou a ser uma representação descartável, segundo a cartilha neoliberalista.
Bem, eu não utilizaria a partícula “neo” porque essa partícula geralmente tem uma intenção, às vezes involuntariamente, depreciativa. Eu sou liberal, acredito na liberdade como algo indivisível: a liberdade política e a liberdade econômica como instrumento do progresso numa sociedade. Bem, por isso defendo a democracia política, defendo as políticas de mercado, as quais acho que devem sempre ir juntas porque é a única maneira de garantir um progresso não só econômico mas também cultural, ético, institucional.
Como o senhor define o liberalismo?
O liberalismo é um espectro muito amplo, em que há muitos matizes. Os liberais concordam basicamente na defesa da liberdade como uma coisa indivisível, mas já na aplicação concreta de medidas liberais há pontos de vista muito diferentes, muito contraditórios. E é porque o liberalismo não é uma ideologia como é o marxismo, por exemplo. Liberalismo é uma doutrina muito flexível, muito ampla, que se alimenta basicamente do conhecimento de uma técnica, de uma informação e, com certeza, de certos princípios. Mas certos princípios muito gerais que têm a ver com a defesa da liberdade.
A democracia política é a única opção de progresso e liberdade de um povo.
Acho que não existe muita margem de escolha. Se um país quer progredir de uma forma civilizada tem que ter democracia política e quanto mais democracia política tiver, ou seja, enquanto haja mais participação, enquanto seja mais respeitada a legalidade, enquanto haja mais independência de poderes, enquanto os direitos humanos sejam respeitados. Em decorrência, vai avançar mais no campo político e cultural; e no campo econômico.
O senhor é conhecido como um intelectual liberal que defende a abertura das fronteiras e principalmente as leis de mercado.
Se uma sociedade quer se modernizar, então tem que abrir suas fronteiras, tem que se integrar aos mercados mundiais, tem que privatizar este setor público que em nossos países é como um empecilho, não permitindo a criatividade econômica. Tem que permitir que as empresas concorram entre si, não há outra política. Dentro desta sociedade, obviamente pode-se fazer variantes, como por exemplo em relação à redistribuição da política de assistência social. Isto cada país tem que decidir de acordo com o que são as suas possibilidades. Sobre isso não se pode generalizar. Mas o que está claro é que não há alternativa. Qualquer outra política, as antigas, estados grandes, empresas nacionalizadas, nacionalismo econômico, isto sempre conduz à catástrofe. Não há um só país que não tenha fracassado quando tenta estas políticas.
O senhor defende abertamente a privatização dos serviços públicos.
Eu sou totalmente favorável à privatização, sim. Mas, digamos, que não pela própria privatização em si, acho que a privatização é um instrumento para conseguir algumas coisas. Acho, por exemplo, que se um governo privatiza uma empresa que é um monopólio do Estado e a entrega como um monopólio para uma empresa privada, não ganharemos nada. Esta empresa vai continuar sendo muito ineficiente, muito corrupta porque este é um produto do monopólio, não de ser pública ou privada. Então, privatizar, sim, mas privatizar abrindo mercados, acabando com os monopólios. E, ao mesmo tempo, em países como os nossos, onde a propriedade privada é tão limitada, acho que a privatização deveria servir para difundir a propriedade privada entre os que não tem propriedade privada: os operários, os funcionários, os consumidores. Como está sendo feito em alguns países com muito sucesso.
A que se deve a miséria da América Latina?
Há trinta ou trinta e cinco anos, a revolução, o marxismo, o coletivismo pareciam a resposta para a injustiça, para o atraso. Depois fomos descobrindo que o socialismo, o coletivismo, o estadismo não traziam riqueza aos povos, mas sim lhes traziam Estados policiais, ditaduras horríveis e, então, digamos, os intelectuais lúcidos evoluíram para formas ou de socialismo democrático, ou de social-democracia, ou de liberalismo. Alguns até para posições conservadoras.
A América Latina tem pouca tradição de sistemas democráticos.
A democracia política é fundamental para o desenvolvimento porque, sem democracia política, sem autênticas liberdades públicas, governos representativos, tribunais independentes, não existe verdadeiramente progresso, mesmo que haja progresso econômico. O progresso econômico é resultante sempre da abertura de mercados, que não é através de um estado grande, de um estado interventor, de um estado dirigente da vida econômica que se cria riqueza, trabalho, desenvolvimento. Acho que na América Latina a experiência nos mostrou que esses estados grandes são estados muito fracos, muito ineficazes e muito corruptos e que tem que se transferir à sociedade civil a responsabilidade da criação de riqueza.
O senhor pretende se candidatar novamente a um cargo político?
Não, em absoluto. Não penso, nunca pensei em voltar à política profissional. Escrevo, falo de assuntos políticos porque, para mim, isto forma parte do meu trabalho intelectual; acredito que esta é uma das obrigações que tem um intelectual, mas opino como um escritor e como um intelectual, não como um político, o que não sou nem voltarei a ser.
Falemos do livro “A guerra do fim do mundo”. Pode-se dizer que este livro foge um pouco do romance histórico. Euclides da Cunha não é retratado, mas surge no romance um jornalista míope que representa a “cegueira ideológica” intelectual latino-americano.
De certa forma sim. A personagem do jornalista míope não é um retrato objetivo de Euclides da Cunha. Está inspirado de uma maneira tênue em Euclides, que é um escritor que admiro muito. Por isso, dedico-lhe este livro. E escrevi esta novela porque li “Os Sertões”, que, para mim, é uma das grandes experiências que tive como leitor. Interessou-me tanto a Guerra dos Canudos quanto o caso de Euclides da Cunha. Euclides é um dos intelectuais brasileiros responsáveis pela desinformação que se criou no Brasil em relação ao que estava acontecendo em Canudos, pelos preconceitos ideológicos. Quando estoura a Guerra dos Canudos, Euclides da Cunha escrevia artigos em São Paulo dando uma interpretação ideológica, apresentando os jagunços como sendo da monarquia, como instrumentos dos senhores feudais. Isso tudo é uma ficção ideológica, nada disso é verdadeiro. Mas o preconceito ideológico é tão forte que, inclusive quando Euclides vai para Canudos, o que vê não é o que está acontecendo, mas sim as imagens ideológicas que ele traz. As crônicas que ele escreve em Canudos falam, inclusive, de jagunços louros, de olhos claros, que poderiam ser oficiais ingleses.
Em “Os Sertões”, Euclides da Cunha faz um exame de consciência.
Sim. Euclides da Cunha é talvez o primeiro intelectual brasileiro a refletir sobre o massacre que houve em Canudos. Ele compreendeu que se tratou de um enorme mal-entendido, do qual resultaram trinta, quarenta mil, cinquenta mil mortos. Nunca saberemos quantos. Então ele faz algo que para mim é incrível, é um esforço de compreensão, um ato fundamentalmente intelectual, que muitos intelectuais não fazem nunca. Um esforço de compreensão do que realmente aconteceu e das razões para que todo um país ficasse cego de tal forma que acabasse acontecendo esta guerra. E então escreve este livro extraordinário. Bem, então, no jornalista míope, de uma forma muito geral, é o que eu quis mostrar, esta evolução. O jornalista míope não entende nada, não vê nada no princípio. Mas, aos poucos, entre todos os que vivem a tragédia, ele aprende uma lição, ele tira um ensinamento.
A sua versão da Guerra de Canudos apresenta os rebeldes e os republicanos como fanáticos.
Os dois grupos eram fanáticos. Eram fanáticos os jagunços, os rebeldes, e eram fanáticos os republicanos. Por isso confundiram estes camponeses coitados com instrumentos de toda uma conspiração antirrepublicana, uma coisa que não eram os rebeldes. O (Antônio) Conselheiro e Moreira César eram como o verso e o reverso da atitude intolerante, da atitude ideológica, a qual acredita que é dona de uma verdade absoluta e de que pode impô-la pela força.
No romance “A guerra do fim do mundo” e, em outros, o senhor dialoga com o estilo narrativo de escritores como Faulkner, Joyce, Virginia Woolf e principalmente Flaubert que inaugurou um novo modo de narração.
Todos os autores que me impressionaram muito, que admiro, certamente deixaram uma marca, deixaram uma influência. Acho que isto é inevitável. Agora, nem sempre os autores que mais admiramos são os que influenciam mais; às vezes as influências mais importantes são inconscientes, não somos lúcidos quanto à marca que deixou certa leitura, mas certamente os escritores que você falou, Faulkner, por exemplo, um autor que admiro muito, Flaubert, é claro, já escrevi um livro sobre ele. Eu sou um grande leitor de novelas do século XIX, de Balzac, de Melville. Acho que Tolstói, Dostóievski me influenciaram muito. O século XIX é como a época ápice do gênero narrativo e de alguma forma gostaria, nas novelas que escrevo, de continuar esta tradição: da novela ambiciosa, da novela de fôlego.
Jorge Luis Borges é o principal escritor latino-americano de todos os tempos?
Borges é um dos grandes escritores modernos, um dos grandes escritores da nossa língua. Poucos escritores enriqueceram a língua espanhola como Borges, ele a purificou. Uma língua que é muito exuberante, geralmente a língua literária, ele enxugou-a, tornou-a austera, tornou-a inteligente, encheu-a de ideias mais que de sensações. Um escritor extraordinário mas, bem, que haja um escritor extraordinário não significa que não possa haver outros.
Falemos da extraordinária sintaxe de Guimarães Rosa.
Guimarães Rosa é um grande escritor, um escritor extraordinário, um dos grandes escritores de nosso tempo, com uma obra muito complexa, que tem muito da cor local, que tem também uma dimensão um pouco esotérica, com referências a uma espiritualidade muito complexa. Um grande criador da linguagem.
Rosa é um dos grandes escritores contemporâneos e representa um momento literário único na América Latina.
Sim, sem nenhuma dúvida, é um dos grandes escritores contemporâneos que, além disso, representa para nós um momento que é muito privilegiado para a cultura latino-americana porque, simultaneamente, surgiram escritores tão importantes aqui e ali, em toda América Latina. Isto permitiu que a América Latina obtivesse do ponto de vista cultural um reconhecimento que não tivera nunca antes.
PEDRO MACIEL é autor dos romances “Retornar com os pássaros” (LeYa), “Como deixei de ser Deus” (Topbooks) e “A hora os náufragos” (Bertrand Brasil)
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