Amores rasos e transbordantes; amores profundos que não se desperdiçam...
Marie intrigou-se novamente. Aquela imagem que trouxera para o consultório do analista se não era de todo estranha, podia então ser definida como intrigante. Aos seus pensamentos veio a imagem de um amor que não se contém em sua morada, verte-se pelas laterais, vaza pelos cantos, transborda apesar da necessidade de se conservar ali, não consegue permanecer e se perde quando transborda... Ela lembrou dos tanques que se rompem, racham, não suportam o peso e o volume de suas águas... Assim pôde definir seus muitos amores, os que não foi possível cultivar em lugares rasos, pois, ao tentarem expandir-se, viram-se transbordando em muitas direções, incapazes de sustentar-se nos seus domínios iniciais.
Aí, a inquieta Marie ousou sonhar com um amor profundo. Um tipo de amor que fosse se enraizando ou mesmo cavando mais espaço interior, para acomodar-se confortavelmente sem o risco de desintegrar-se em pouco tempo.
O analista embarcou na conceituação inusitada. Talvez ela estivesse com alguma razão. Amores que se aprofundam, não se desperdiçam, aproveitam-se na própria descoberta, aliam-se a descobertas que varam os umbrais do tempo e das esperanças, evoluem para intensos conhecimentos mútuos, superam etapas, atravessam tormentas, alcançam redenção.
Mas o que deixava Marie mais espantada era a sucessão de amores rasos e transbordantes que costumava viver. Não que não fossem bons e marcantes sentimentos, isso eram, sem dúvida, mas aquela repetição de contextos onde havia tantas perguntas que acabavam sempre ficando sem respostas. Ou então, havia tantas respostas que nunca satisfariam as indagações que ela acabava por colocar nalguma prateleira do esquecimento, já que não era possível solucionar tais impasses.
Os amores profundos podiam até durar menos tempo, não era questão de cronologia, o fio condutor do raciocínio se colocava além disso, acima de contagem de anos e meses, o importante era a qualidade do que se sentia, a certeza de incorporar aprendizado e ser inerente guardar experiências positivas. Nos tais amores rasos, tornava-se comum o saldo de enganos sobre o de certezas, e ainda, a sensação de desconfiança com sabor de mentiras contrapondo-se aos momentos de decepção ou de desilusão.
Amor profundo gera confiança mútua. Amor raso baseia-se em suposição de comportamento. Amor transbordante escapa ao encontro verdadeiro. Amor que se desperdiça deixa um rastro de incopentência para quem tentou amar de verdade..
Essa teoria martelou Marie por mais alguns dias, até que ela se imbuiu de auto-compaixão e resolveu viver seus amores rasos ou profundos à medida que surgissem, em fases sazonais, talvez porque fizessem parte de um contexto menos rígido, e houvesse necessidade de aceitar até os amores que vazam pelos recantos dos corações sem destino certo, como barcos à deriva, meninos de rua, pipas avoadas, perdidos sentimentos.
Quem sabe, ela voltou ao analista e perguntou, a cada amor raso vivido e desperdiçado, não se terá ainda o direito de encontrar um amor profundo que preencha a alma amante com sua força definitiva.
Nem ele e nem Marie, tinham a resposta, porque todos os amores abrigam em si mesmos o enigma da conspiração, a incerteza do futuro e o mistério eterno dos corações que procuram seus pares.
Cida Torneros
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