segunda-feira, 4 de abril de 2011

Novos recados de Moscou

Enviado por Aparecida Torneros - 19.10.2005

14h05m


Novos recados de Moscou



Vendo o tenente-coronel Marcos César Pontes, ao lado do dirigente russo Putin e do presidente brasileiro Lula anunciando a primeira viagem espacial de um brasileiro, senti-me na obrigação de falar sobre o Tony, Antônio Souza, um brasileiro de pouco mais de 20 anos, que viajou para a Rússia, há menos de uma mês.






Já não é pouco sermos amigos, de uns tempos para cá, com a diferença de idade, que soma exatamente a idade dele, mais 10. Sou carioca e ele, paulista. Sempre morei no Rio e ele em Sampa. Ou seja, tenho mais que o dobro do tempo desse menino no mundo. Podia ter sido sua mãe, ou tia, mas sou sua amiga. Nos conhecemos, por acaso, e a amizade surgiu como roubada do tempo-espaço.





Quando ele passou para a escola de Pirassununga, aos 20, comemoramos visitando o Museu do Ipiranga. Isso mesmo, programa cultural com aquele espécime raro, ávido por história brasileira, falante da língua alemã, rabo de cavalo às vésperas de sumir com o novo corte de cabelos para a escola militar, de onde pretendia sair piloto de caça.





Se fomos beber, depois da incursão pelo acervo da Independência, claro que para ele, naturalmente da geração saúde, só suco e água. A mim, coube a parte contaminada da bebida alcoólica, que ele, risonhamente perdoou, brindando até, pois era o seu futuro que eu queria saudar.



Um elogio me brotou: - Parece incrível que na sua idade, você fale um português tão correto. Eu me orgulho disso, seu vocabulário é extenso, concatenado, diferente da garotada que anda por aí.



Tony se foi para os estudos e eu segui minha vida. Trocamos correspondência aqui e alhures, respeitosamente, como cabe aos amigos fraternos. Continuamos amigos. Há cerca de dois meses, ele me ligou para contar a grande e destemida reviravolta da sua vida.



Inscreveu-se, passou, conseguiu, já organizou tudinho, abandonou a história de piloto, e ia viajar, em setembro, para a Rússia, estudar por quatro anos. Queria se despedir de mim. Vai se dedicar na universidade, em Moscou, ao tema "física aero-espacial". E esperou minha reação, num silêncio emocionado.


Como posso descrever o que senti?

Era o tempo atravessado. Nos anos 70, se um amigo de 23 anos me dissesse que ia pra a União Soviética, eu entenderia perfeitamente. Havia o mito do comunismo forte, havia o sonho do brasileiro perseguido pela repressão de direita. Havia uma esquerda crescente e pródiga.


Mas agora?


O que um jovem dessa idade, brasileiro criado em São Paulo, descendente de alemães, ex-aluno do Humboldt, estudante de Pirassununga, morador do Morumbi, falante de um português escorreito, de corpo trabalhado na malhação, leitor de literatura vasta, cheio de namoradinhas patricinhas, tendo um pitt-bul como grande companheiro, detentor dos olhos mais expressivos que um menino brasileiro culto possa ter, o que, meu Santo Antônio dos Pobres, esse rapaz iria fazer tão longe e num lugar onde o sonho parece ter acabado?

Parabenizei-o pela coragem e desejei felicidades na realização do seu novo sonho. Mandei alguns presentinhos, um livro com poemas de Mayakovsky, pedi que assistisse "Dr. Jivago", e que revisse "Adeus, Lênin", descartei pelo menos 30 anos do meu corpo, e , em homenagem ao Tony, esse "Antônio brasileiro", pude me sentir com a idade de outros tempos.




Solicitei, emocionada, que me escreva, descreva e ressuscite em mim o ideal dos povos sofridos, do eterno terceiro mundo, que têm, na sua mocidade, um grande esteio de sonhos e de futuras conquistas.


Vejo o meu amigo Tony embarcando no sonho dos seus antecessores, os jovens da minha geração, como sendo aquele passageiro que sobrou. Deve estar vibrando por lá com o vôo do Tenente Marcos. Depois eu conto o que ele me contar nos próximos tempos, quando me chegarão, atrasados pelo menos algumas décadas, novos recados de Moscou.


Aparecida Torneros é jornalista

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